MÃOS TALENTOSAS I
É o típico filme que não cansamos de ver, volta e meio estamos lá com saudade de novo. Há sempre um novo trecho que observamos algo que não tínhamos ainda notado.
A história de Ben Carson, o maior neurocirurgião pediatra do mundo. Uma história e tanto. E me lembro quando o assisti, nossa! É a história real de um grande médico, salvou tantas vidas, inventou novos procedimentos médicos, novas cirurgias (delicadíssimas), deu esperança a inúmeros pais e mães para com seus filhos.
O histórico social de Ben era de muitas dificuldades financeiras, sociais, emocionais etc. Filho de uma empregada doméstica, analfabeta. O pai era traficante. Ben não conviveu com ele porque a mãe quando soube da bigamia e da verdadeira "profissão" do "marido", separou dele com duas crianças pequenas para cuidar.
Ben tinha um histórico de vida de estudar e ficava em casa vendo TV com irmão até a mãe chegar do emprego. Tinha auto-estima baixa, achava que não conseguia aprender. Uma parte foi resolvida quando a mãe descobriu que ele tinha era problema de vista, por isto não conseguia fazer as tarefas.
A mãe, tão sábia mulher, que mesmo analfabeta, queria um futuro para os filhos e sabia que ele estava nos estudos dos filhos. Ela os incentivou te todas as maneiras.
Observando os hábitos de um patrão e sua biblioteca. Tirou o tempo que os filhos ficavam somente vendo televisão, incentivou e cobrou a leitura de diversos livros deles. No começo estranharam mas se adaptaram. A nova rotina era ir à biblioteca, ler livros e apresentar os resumos para a mãe.
As visitas à biblioteca, a leitura de diversos livros abriram um mundo de possibilidades para Ben. De um garoto que achava graça de programas de piadas bobas e com viés racista na TV, Ben e seu irmão acompanhavam um programa de disputa de conhecimento, uma espécie de Passa ou Repassa daquele tempo. Com o passar do tempo e com sua nova rotina de leitura e estudo, os irmãos começaram a ter conhecimento sobre os assuntos das perguntas do programa e respondiam corretamente antes dos participantes da TV.
E é acompanhando este programa que Ben conhece a música clássica e se apaixona. A música o acompanhou em toda a sua vida até mesmo nas cirurgias.
Os conhecimentos adquiridos com diversas leituras fizeram Ben ter conhecimento e curiosidade em diversas áreas. E uma vez indo para a escola tinha várias pedras de um material diferente, ele coleta pedras e procura na biblioteca um livro sobre rochas e estuda-as. Algum tempo depois um jovem professor de geografia, com a mesma pedra na mão, pergunta à turma se sabiam o que era isso e ele brilhantemente responde:
__ Uma obsidiena.
O professsor diz:
__ Obsidiana. Está certo.
A sala reage de boca aberta, todos admirados com o extraordinário conhecimento de Ben. O professor pede para que ele esperasse depois da aula. Ben ficou com receio, achou que teria represálias, o professor poderia não ter gostado de sua atitude e interpretado de outra forma. Mas o que se seguiu foi espetacular.
__ Sabe como se formou?
Ben responde:
__ Bem, ela foi formada depois de uma erupção vulcânica, pelo resfriamento da lava quando chega à água. O vulcão explode e a lava escorre fervendo. Quando chega à água os elementos se fundem e como a água é fria, o ar é expelido, a superfície vitrifica e a lava endurece. Aí faz a obsidiena, quer dizer obsidiana.
O professor diz que quer vê-lo depois da aula.
Ben chega receoso ao professor que pergunta:
__ O que houve?
Bem pede desculpas.
O professor responde:
__ Desculpar o quê? Foi você que abriu a porta. Venha.
O professor o convida para observar o microscópio e diz:
__Sabe o que é isso? Isso é outro Benjamim. Você acaba de entrar em outro mundo...
Pergunto e se esse professor se sentisse intimidado ou desafiado por Ben?
Um aluno que soube algo que o professor perguntou e que nem estava no livro didático. Algo que partiu da curiosidade dele.
O que este professor tinha era sabedoria e era amante do saber. E por amar o saber não se importa quem tem o saber ou o acesso a ele. Não importou para ele se Ben era negro, pobre, o importante era que ele tinha um aluno que assim como ele gostava de ciências, era curioso, pesquisador. O amor que este professor tinha era de ver o conhecimento ser propagado, de chegar a outras pessoas.
Quando diz "você abriu a porta", ele diz você abriu a porta do conhecimento. Prepare-se para a maior aventura que o conhecimento vai trazer na sua vida que é o crescimento pessoal, do raciocínio, da razão, do saber, do conhecimento, da sabedoria.
Vemos muitas atitudes assim. Aconteceu comigo também. Não desafiei a professora de história, só fiz um comentário mínimo sobre música clássica. E ela naquele tom de "quem é você?" me perguntou, numa sala lotada com 50 alunas.
___ O que é música clássica pra você?
Fiquei calada. Deu um nó na garganta.
E ela calmamente, com toda a sua "superioridade" falou:
___ Música clássica é uma música que tem seu início e ela tem as notas e depois acaba nas mesmas notas que começou.
Aquele olhar de "quem é você", aquela postura me diziam: "Eu sou muito bem nascida, estudei piano, fiz direito, faço parte do coral, frequento a alta sociedade cultural e você, o que você é?
Paralisara ali o pouco do meu entusiasmo com a música clássica, paixão que
só fui retomar 22 anos depois, já amadurecida com auto-estima e
confiança estabelecidas.
O que penso sobre esse episódio hoje é que eu era uma branca, pobre, adotada por uma família de negros, que lia e estudava muito. Gostava de temas que geralmente adolescentes não gostam como: arte, política, economia, sociedade, culturas diversas etc. E dentro disso estava a música, ouvindo outros gêneros também. Não entendia porque os três tenores me fascinavam tanto aos 17 anos. Por quê eu não poderia gostar e ter curiosidade sobre música clássica? A música tem divisão social? Pobres têm que gostar disso e ricos daquilo?
Me senti tão diminuída que não que não tive mais incentivo. Numa época onde se tinha que comprar LPs e o que eu conseguia ouvir era em filmes e especiais da TV.
Mas eu entendo hoje que era o que eu sempre escrevo: o capital cultural. Música clássica é ainda um estilo que ainda predomina nas classes mais abastadas. O pobre como não tem acesso em seu meio fica "desfamiliarizado" com esse estilo.
O pobre que por alguma razão goste ou tem acesso a esse estilo musical é discriminado pelos ricos e classe média alta. Ainda pensam que a sociedade tem que estar estratificada socialmente e culturalmente com condições econômicas (renda, poder de compra etc), sociais (casa, alimentação, cuidados médicos, escola) e culturais (a própria fala, lazer, esportes, culinária, música, leitura, a dança etc) separados entre ricos e pobres. Há no íntimo da sociedade o conceito adquirido e passado de geração em geração que certos hábitos são de pobres e outros são de ricos.
Quando um rico vê um pobre lendo numa biblioteca, no consultório médico, já acha estranho. Como se o hábito de comprar livros e ler fosse uma exclusividade das classes mais abastadas. Quando vê um pobre ouvindo rock inglês estranham muito porque, na sua concepção, pobre só ouve sertanejo e funk. Quando existe um pobre que houve música clássica é visto como extravagante, excêntrico etc. E em inúmeras outras situações te lançam olhares de como isso é possível e seus pensamentos vageiam na verdade para essa divisão cultural social entre pobres e ricos.
Há aqueles que não se conformam com a ascensão social dos pobres e sobre a égide do preconceito e da discriminação social magoam, insultam e ofendem as pessoas pobres que manifestam gostos artísticos comuns à classe média alta ou rica. Posso dizer, que foi por tudo isso, que fui constrangida.
A estratificação social no Brasil ao longo dos séculos foi tanta, o acesso à educação sempre foi negado como direito de todos (somente após a Constituição de 1988) é que passou a ser um direito de todos. Que o analfabetismo passou a ser superado. Que se fixou como cultura nas pessoas que hábitos de ler, ouvir músicas clássicas, tocar piano, estudar balé fossem hábitos e condições somente de ricos.
É claro que as baixas condições econômicas não favorecem o piano, o balé por exemplo. Piano, balé e suas aulas tem que pagar. Quem que tem dinheiro para pagar as aulas de piano e balé? Os ricos e a classe média.
Atualmente, com a mobilidade social que vem ocorrendo no Brasil, vejo estas características sendo emancipadas. Estou vendo meninas oriundas de famílias pobres (que se tornaram classe média) frequentarem o balé. Mas ainda falta popularizar o piano, popularizar a música clássica.
Música é pra emocionar, pra tocar o fundo do coração e da alma. Música não pode ser instrumento de diferenças sociais e discriminação. Música tem que ser conhecida, acessível, sentida e experimentada, para que cada gole nos sove nossa sensibilidade, a ponto de perceber que o ouvido, assim como o paladar, é mutável, adaptável aos gostos e sons. Ninguém nasce não gostando ou gostando de tal gênero musical, o que há é a convivência com tais ritmos e sons. Ao propiciar um encontro de um gênero musical, numa abordagem mais humanista e sociológica, estão abertas as portas para a democratização musical.
Sandra Cristina Gomes - Professora de História e Geografia. Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
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